A ditadura do mercado global

Filme francês ‘O capital’ é uma aguda e ao mesmo tempo irônica denúncia dos males do sistema capitalista atual

Marcello Scarrone

Como um Robin Hood às avessas, Marc Tourneil, durante uma assembléia de dirigentes e acionistas do banco do qual é presidente, se dirige aos espectadores dizendo: ”Continuaremos tirando dos pobres para dar aos ricos neste jogo, meus senhores. Até que tudo isso exploda!”.  Frase representativa e emblemática do ultimo filme do cineasta Constantin Costa-Gavras, O Capital, posta na boca de seu protagonista, ela sintetiza a problemática trazida para as telas: os perversos mecanismos e as perigosas conseqüências ligados à especulação financeira e à assim chamada ditadura dos mercados econômicos.

O filme retrata a ascensão meteórica de um simples, esforçado e obediente funcionário do banco Fênix ao cargo de diretor, escolhido inicialmente como mero instrumento dos cálculos e interesses dos altos escalões, mas em breve totalmente  encaixado no papel de líder da instituição financeira, a ponto de incorporar a imagem do perfeito executivo cujo objetivo é somente o aumento de capital da empresa e a derrota da concorrência, custe o que custar.  Discussões como o peso e o valor do dinheiro no mundo de hoje, sua importância diante dos códigos éticos existentes, até no próprio ambiente de trabalho (hilárias as cenas em que um já decidido corte de pessoal é obtido e apoiado pelos milhares de funcionários do banco através do estratagema de um incentivo à transparência e eficiência), e o embate (ou o tácito acordo?) entre um capitalismo norte-americano “selvagem”, de caubói, e outro mais light, à européia, perpassam a obra de Costa-Gavras.

Assim assistimos às artimanhas com as quais Marc se move no mundo das finanças e nos mundos paralelos da alta sociedade e da informação, dando aulas de eficiência e de conduta sem quaisquer escrúpulos morais. Até a vida matrimonial acaba afetada, assim como as relações com os familiares mais próximos. O comentário do protagonista, regado a ironia, sobre o capital e o mercado, que conseguiram na atualidade aquilo que os revolucionários socialistas e comunistas sempre buscaram no passado – que é a internacionalização do mundo – é dirigido a um velho tio esquerdista durante um almoço de família. Na sala ao lado, as crianças reunidas brincam em total silêncio, cada uma perdida em seuiPhone ou jogo eletrônico. Até no título, o filme (baseado no livro homônimo escrito em 2004 pelo economista francês Stéphane Osmont) dialoga e brinca com a obra de Karl Marx. O capitalismo, que na coletânea de volumes do pensador alemão aparece como o sistema econômico explorador e responsável pela proletarização dos trabalhadores, aqui se apresenta com a cara dos mercados financeiros que deitam e rolam sobre todos nós.

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O longa

Sem ser panfletário, o filme se apresenta como uma aguda e ao mesmo tempo irônica denúncia dos males do sistema. Menos impactante do anterior O corte, do mesmo diretor, onde o drama do desemprego de um alto funcionário de empresa, devido a ritmos e regras implacáveis das economias avançadas, o leva a soluções desesperadas e paradoxais, o novo longa de Costa-Gavras lança mão da atuação como protagonista de Gad Elmaleh, habitualmente empenhado em papéis mais leves e engraçados. A construção da personagem é bem feita, equilibrando humor e sarcasmo, e o longa acompanha as dinâmicas frenéticas dos mercados, apesar de algumas quedas de ritmo.

Mesmo não sendo uma das melhores obras do diretor, ela confirma mais uma vez a característica dominante de sua produção. Denúncia, desvendamento de fatos, bastidores e conseqüências de situações e eventos de cunho político. O gênero “político” de seus filmes se tornou uma etiqueta que ele mesmo recusa, atentando para o fato que todo filme, até de super-herói, é um filme “político”. Não há como negar a veracidade desta afirmação, mesmo recordando a impressionante série de películas assinadas por Costa-Gavras a respeito de situações e eventos dramáticos da política mundial das ultimas décadas, e que merecem serem vistas até para acompanhar o ensino e a análise histórica dos mesmos, como documento visual impactante. Começando pelo vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro Z (1969), sobre a ditadura de sua pátria, a Grécia, e continuando com A Confissão (1970), que denunciava as ilegalidades do comunismo na Tchecoslováquia, Estado de sítio (1972), uma reconstrução o seqüestro do agente norte-americano Dan Mitrione pelo Tupamaros no Uruguai, e Missing (Desaparecido) (1982), sobre o trágico fim de um jornalista nos primeiros meses da ditadura de Pinochet no Chile. Mais recentemente, antes de O Corte (2005), Costa-Gavras dirigiu Amen (2002), um filme sobre silêncios e ambigüidades de hierarquias eclesiásticas diante do nazismo. Em suma, o mundo contemporâneo, seus dramas e embates revisitados pelo diretor grego: ótimas lições de historia para todos nós.

Fonte: Revistadehistoria.com.br

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